Na semana em que vídeos de depoimentos foram exibidos na televisão, policiais militares liberaram por R$ 10 mil um motorista suspeito de atropelamento com morte, um PM matou o colega dentro do batalhão e outro é suspeito de matar um adolescente de 14 anos, a fragilidade e a falta de controle dos órgãos de segurança pública do Brasil foram expostas à população quase com a mesma repercussão que os crimes que as cercam. Essa é a avaliação de quatro profissionais e especialistas no assunto ouvidos pelo Terra.
Ministro da Justiça no governo Itamar Franco, entre 1992 e 1994, o jurista Maurício Côrrea, classifica como “desautorizada e inconveniente” a sequência de condutas das polícias nos últimos dias. “Não há dúvida que existe falta de controle, de cumprimento do dever da polícia em todos esses casos. Nos vídeos da apuração do caso Bruno, obviamente houve a anuência da polícia. Ao que me parece, existiu um interesse grande em explorar o caso para se expor na mídia”, afirma.
Na opinião do especialista em segurança pública e membro do Conselho Nacional de Política Criminal Marcos Rolim, condutas inadequadas tornaram-se endêmicas nas polícias brasileiras, motivadas, entre outras razões, pela histórica ausência de controle nas instituições. “As polícias civis nunca foram controladas por ninguém. As militares sempre tiveram um controle interno bastante forte, mas nunca eficiente. Isso porque os próprios comandos estão comprometidos com a corrupção e a violência, o que põe em xeque o controle como um todo”, diz.
O ex-corregedor da Polícia Militar do Rio de Janeiro coronel Paulo Ricardo Paúl também aponta o descontrole sobre o trabalho dos profissionais da segurança pública como justificativa para a má atuação dos colegas. No entanto, para ele, aliada a isso, a desqualificação dos policias e o modelo de polícia adotado no País potencializam os desvios de conduta. “Não podemos justificar os problemas somente no descontrole. Olha o caso da discussão dos PMs. Isso demonstra o total desequilíbrio emocional da polícia e comprova que o nosso modelo é defasado”,afirma.
No episódio de negligência dos PMs no atropelamento ocorrido no túnel da Gávea, o ex-policial acredita que um “interesse desconhecido” tenha interferido na abordagem branda. “Não consigo achar explicação para os PMs não terem feito uma abordagem adequada. Eles não fizeram o básico de uma situação policial. Ali não é nem falta de qualificação e nem conhecimento. Foi algum fator que interferiu”, afirmou, suspeitando da possibilidade de corrupção poucas horas antes de o pai do motorista falar, na sexta-feira, que havia prometido R$ 10 mil aos PMs para o veículo ser liberado. No mesmo dia, o comando da corporação prendeu os PMs envolvidos.
Apesar de concordar que a polícia transparece uma imagem fragilizada ao protagonizar condutas inadequadas, o secretário nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri, defende que as forças policiais estão mais estabilizadas atualmente se comparadas a períodos anteriores. “A polícia pode passar essa imagem, mas a impressão é falsa. Saímos de uma ditadura há menos de 30 anos, quando elas (polícias) eram obscuras. Lentamente, passamos por um processo de construção de controle. Há falhas, mas estamos avançando”, diz.
No entanto, na avaliação do pesquisador João Marcelo de Lima, integrante do Grupo de Estudos de Segurança Pública da Universidade Estadual Paulista (Gesp), os meios de controle das polícias brasileiras – corregedorias e ouvidorias – são corrompidos por causa do corporativismo e, por consequência, protegem os PMs, principalmente os de alto escalão. “Em quase 30 anos, o que vemos é uma polícia que não presta conta, além de agir por interesses próprios, corporativos ou do próprio policial. Não há órgão fiscalizador externo eficaz”, afirma ele, colaborador do portal Observatório da Segurança Pública.
Deslumbramento e prejuízos
O assédio da imprensa a casos como o desaparecimento da jovem Eliza Samudio leva policiais a ocuparem espaços nobres no noticiário brasileiro. No entanto, na opinião do ex-ministro Côrrea, as polícias são despreparadas para interagir com a imprensa e a exposição massiva provoca um deslumbramento. “Falta preparo para eles (policias) interagirem com os veículos de comunicação. Eles não têm a devida noção da responsabilidade que exercem”, afirma.
A divulgação de informações como conteúdo de inquéritos e vídeos à imprensa é uma atitude condenável sob o ponto de vista profissional, de acordo com o ex-corregedor Paúl. Para ele, ao antecipar os rumo das investigações, os policiais comprometem o conteúdo do inquérito e, consequentemente, o rumo do processo na Justiça. “Há um estrelismo, aquele complexo de mariposa de querer aparecer. Isso pode comprometer uma possível condenação”, diz.
Rolim classifica como “arma para os acusados” a divulgação por parte da polícia de informações obtidas na apuração. De acordo com ele, com o conteúdo do inquérito, os advogados dos indiciados adquirem condições que lhes permitem até impugnar procedimentos. “Até chegar na Justiça, a investigação é sigilosa em qualquer País do mundo. Aqui, alguns delegados não resistem aos holofotes da mídia e começam a alimentar a imprensa. Alguns apenas por vaidade, outros em troca de dinheiro”, afirma.
A relação das polícias com a imprensa, na análise de Rolim, extrapolou o patamar profissional. “O mais claro nestes episódios como do caso Bruno é que nossos policias não sabem lidar com a imprensa e abrem informações que não poderiam abrir, o que causa atropelos e deixa de ser profissional. Deveriam existir porta-vozes capacitados para se relacionar com a mídia de forma produtiva”, diz ele, também formado em jornalismo.
Os episódios
17 de julho – Detalhes do inquérito da investigação sobre o caso envolvendo o goleiro Bruno, suspeito do desaparecimento da ex-amante Eliza Samudio, 25 anos, são exibidos na televisão.
19 de julho
– Outro programa televisivo veicula imagens de uma conversa informal entre policiais e o jogador Bruno, durante o voo que o levava preso do Rio de Janeiro para Minas Gerais. No dia seguinte, a polícia de Minas Gerais anuncia uma sindicância para investigar o vazamento e afasta duas delegadas da apuração.
20 de julho – No Rio de Janeiro, policias liberam os ocupantes do veículo envolvido no atropelamento do jovem Rafael Mascarenhas, filho da atriz Cissa Guimarães. Ele morreu no hospital. Poucas horas depois, após fotos estamparem a frente do carro destruída e desmentirem a versão da polícia de que não havia sinais de acidente, a PM afasta os envolvidos na ocorrência. Na última sexta-feira, o pai do motorista admite que pagou propina aos policiais para que o veículo fosse liberado.
21 de julho – Na tarde do dia seguinte ao atropelamento, um policial militar mata outro dentro do batalhão após uma discussão. Depois de disparar contra o colega, ele tenta fugir, mas acaba preso por outros PMs.
21 de julho – Em São Paulo, a Policia Civil libera para duas redes de TV imagens do depoimento do advogado Mizael Bispo, suspeito de matar a advogada Mércia Nakashima.
22 de julho – Um novo vídeo com o goleiro Bruno conversando com um agente penitenciário dentro do presídio Nelson Hungria, em Contagem (MG), é exibido em um programa de televisão. No dia seguinte (sexta-feira), o agente é afastado do cargo.
25 de julho – Em Fortaleza (CE), um policial militar dispara contra a cabeça de um adolescente de 14 anos que estava na garupa da motocicleta do pai. Durante abordagem para verificar uma ocorrência de assalto, o PM ordenou que a motocicleta parasse e não foi atendido. O policial então disparou em direção à cabeça da vítima, apesar de afirmar que queria acertar o pneu do veículo. Em depoimento, o pai do adolescente disse que não ouviu a ordem do PM para parar a motocicleta.
TERRRA