A editora de saúde Cilene Pereira conta sobre a capa desta semana
No domingo, 10, dia das mães, a empresária paulistana Aline Scullion, 28 anos, grávida de 17 semanas, decidiu dar um presente diferente para sua mãe, Maria: um ultrassom das gêmeas Luna e Bella. No exame, ela descobriu que as bebês sofriam de síndrome de transfusão intergemelar, quando há a formação de comunicações vasculares anormais entre os fetos. A confirmação do diagnóstico veio na terça-feira, 12. No dia seguinte, Luna e Bella passaram por uma cirurgia intrauterina no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, na qual o laser foi usado para fechar os vasos sanguíneos que as ligavam. Cada uma agora tem sua rede de abastecimento sanguíneo. “Sem essa cirurgia, a saúde delas estaria em risco. Agora sigo tranqüila na gestação, sabendo que elas estão bem”, diz Aline.
Há alguns anos, em uma situação como a de Luna e Bella, o risco de morte de pelo menos um feto era de 95%. Nesta síndrome, um feto recebe parte do sangue do outro, o que resulta em acúmulo, e o outro acaba ficando com pouco sangue. Hoje, com o diagnóstico precoce e tratamento, essas crianças têm 85% de chance de sobreviver. Em casos de hérnia diafragmática fetal – órgãos abdominais como fígado, estômago e intestino desenvolvem-se na região torácica, pegando o lugar dos pulmões -, o feto tem 50% de possibilidade de sobreviver se tratado a tempo. Antes, sem opção, a chance de vida era menor do que 10%. Em situações graves, próxima do zero. Aqueles que nasciam prematuros (abaixo de 37 semanas) pesando menos de um quilo tinham 50% de chance de viver. Atualmente, quando assistidos do modo correto, 90% deles deixam o hospital, crescem, tornam-se adultos. Esses índices são alguns resultados do formidável avanço da medicina especializada em salvar aqueles que estão bem no começo da vida, ainda dentro do útero ou fora dele antes do tempo certo.
Por trás do salto entre o que era possível oferecer para o que se dispõe atualmente há uma combinação de fatores que inclui o maior conhecimento do desenvolvimento fetal e dos recém-nascidos, a sofisticação dos aparelhos de imagem e o treinamento preciso de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde envolvidos no atendimento. A primeira etapa na qual é possível enxergar a qualidade que isso resultou é a do diagnóstico. “A maior parte dos problemas significativos com o bebê é detectável na fase intrauterina”, afirma Javier Miguelez, assessor médico em medicina fetal do Gestar, do Fleury Medicina e Saúde, de São Paulo. “Com os exames, é possível dar tranquilidade aos pais com relação a malformações graves, como a anencefalia, e a cerca de 90% das cromossomopatias, como a Síndrome de Down”, explica.
No que se refere às enfermidades causadas por anomalias nos cromossomos (abrigam os genes), os destaques são os exames de sangue para detectar boa parte delas. “A vantagem é fazer a detecção precoce dessas síndromes sem realizar a punção na placenta, que oferece 1% de risco de aborto”, diz Miguelez. “É o melhor método de rastreamento e não coloca a gestação em risco”, diz Fábio Peralta, cirurgião ginecológico e que atua na área de medicina fetal do Hospital e Maternidade São Luiz e no Hospital do Coração (Hcor), em São Paulo.
Em relação às malformações, os grandes aliados são os exames de imagem. “O ultrassom evoluiu muito. As gestantes podem optar se desejam fazer o ultrassom morfológico em 3D ou 4D” diz Márcia da Costa, coordenadora da Maternidade São Luiz, de São Paulo. O ecocardiograma fetal, por sua vez, identifica malformações que afetam o coração.
Algumas das doenças identificadas ao longo da gestação contam hoje com tratamentos feitos ainda na etapa intrauterina da vida (leia no quadro abaixo). Entre os que mais chamam a atenção estão os que corrigem problemas cardíacos. No Hcor, funciona um centro de referência nesse tipo de procedimento. Em média, eles realizam de cinco a seis por ano, com ótima taxa de sucesso. Uma das anomalias cardíacas lá tratadas é a estenose pulmonar crítica, que consiste no estreitamento na válvula pulmonar que pode levar à hipoplasia do ventrículo direito (redução do tamanho do ventrículo) e à estenose aórtica crítica (estreitamento na válvula aórtica que pode resultar na síndrome de hipoplasia do coração esquerdo).
A intervenção não dura mais do que uma hora. Os movimentos do cirurgião são guiados pelas imagens do ultrassom. Primeiro, a mãe recebe anestesia peridural (analgesia do abdome para baixo). Depois, o feto é anestesiado (em uma das coxas). Em seguida, uma agulha de quinze centímetros de comprimento atravessa a barriga da mãe, a placenta e punciona o coração do feto. Por meio desta agulha introduz-se um balão, inflado no lugar que precisa ser dilatado para permitir o desenvolvimento correto do coração.
Perícia e delicadeza extremas são indispensáveis para o sucesso de procedimentos como esses. Só para se ter uma ideia do que se trata o alvo com o qual os médicos estão lidando: por volta da 24a semana de gestação, um feto pesa em torno de um quilo. Seu coração mede cerca de dois centímetros, os ventrículos, quando normais, dez a quinze milímetros (os reduzidos de tamanho por causa da doença, oito milímetros), e a válvula pulmonar, quatro milímetros.
Antes da opção de correção no útero, o bebê era obrigado a passar por pelo menos três estágios cirúrgicos. “A primeira operação é feita logo após o nascimento, a segunda entre quatro e seis meses e a terceira quando a criança está próxima dos três anos”, explica a cardiologista pediátrica e fetal Simone Pedra, coordenadora da Unidade Fetal do Hcor.
Uma modalidade de operação na etapa uterina que também impressiona é a cirurgia a céu aberto. No procedimento, o útero é exteriorizado, feita uma incisão, o feto operado e recolocado dentro do órgão, reposicionado no corpo da mãe. A intervenção é oferecida em hospitais das redes particular e pública.
O Brasil já contabiliza mais de 170 cirurgias do tipo, incluindo uma recente traqueostomia executada pelo pioneiro em intervenções do gênero no País, o médico Antonio Fernandes Moron, responsável pelo Serviço de Medicina Fetal do Hospital e Maternidade Santa Joana, em São Paulo. A operação é indicada em casos de obstruções de vias aéreas, tumores pulmonares, encefalocele (defeito no tubo neural que causa a herniação do cérebro e das meninges) e mielomeningocele, conhecida como espinha bífida (malformação caracterizada pelo fechamento incompleto da espinha dorsal e do canal espinhal antes do nascimento, e cuja principal sequela é a hidrocefalia).
O País foi o primeiro na América Latina a realizar a cirurgia a céu aberto para correção de mielomeningocele, pelas mãos de Moron. A intervenção representa um avanço importante para a manutenção da qualidade de vida dos bebês, pois evita o acúmulo de líquor no cérebro. “Antes da cirurgia era necessária a implantação de uma válvula cerebral, que devia ser substituída em média quatro vezes ao longo da vida, para drenar o líquor para a cavidade abdominal”, explica o médico. A operação pode ser feita somente entre a 24ª e a 26ª semanas de gravidez. O parto ocorre, em geral, por volta da 35ª semana – o normal é entre a 38ª e a 40ª semana.
Apesar do sucesso das operações a céu aberto, desde 2013 uma nova técnica é capaz de corrigir a mielomeningocele sem a necessidade de retirar o bebê do útero. Portanto, é menos invasiva. Trata-se de uma intervenção endoscópica criada pela médica Denise Pedreira, cirurgiã fetal do Centro de Terapia Fetal e Neonatal do Hospital Albert Einstein, ligado à clínica de especialidades pediátricas da instituição. Na operação, são feitas três pequenas incisões na barriga da mãe, por onde passam uma câmara e os instrumentos cirúrgicos. Dentro do útero, parte do líquido amniótico é drenado e é injetado gás carbônico. No local em que a coluna do bebê está aberta, a pele é cortada e a medula, restaurada. O corte então é coberto com biocelulose (curativo biocompatível), e fecha de forma mais natural. Até hoje, 21 bebês brasileiros foram operados desta forma. “Essa técnica se tornou um marco na medicina fetal. Vários médicos internacionais me procuram para levar essa cirurgia a outros países”, conta Denise.
No serviço do hospital Albert Einstein, há opções de terapias clínicas quando a situação assim exige. Infecções, como a toxoplasmose, são tratadas por meio da administração de antibióticos. “Os remédios são dados via oral para a mãe em doses altas o suficiente para atravessar a placenta”, explica Rita Sanchez, coordenadora médica do Departamento Materno-Infantil da instituição.
Além dos avanços nos exames e nos procedimentos cirúrgicos intrauterinos, os cuidados com bebês prematuros também evoluíram muito. Um marco nessa história foi a indicação no Brasil de surfactante para prematuros. O remédio expande os pulmões ainda em formação desses bebês. “Só essa substância já foi determinante para o ganho de vidas de prematuros”, diz a neonatologista Graziela Lopes del Bem, do Hospital São Luiz.
A essa inovação, somaram-se a chegada ao país das incubadoras umidificadas. Elas garantem que o bebê não perca calor e que sua pele mantenha-se hidratada. Mais recentemente, mantas térmicas mais leves e sofisticadas evitam a hipotermia. A nutrição desses bebês também melhorou. “Foram produzidas sondas mais apropriadas e produtos que fornecem nutrientes importantes ao bebê”, explica Alice Deutsch, coordenadora médica da Unidade Neonatal do Hospital Albert Einstein. “Hoje temos cada vez mais armas para garantir a vida.”
Fotos: Frederic Jean/Ag. Istoé; Gariel Chiarastelli, João Castellano/Ag. Istoé; Airam Abel…Site IstoÉ