terça-feira, 14/05/2024
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Todas as mulheres de Chico

Ouviram do Ipiranga: “Lindooooooo, lindooo, lindu!”

Três tipos de “lindo” ecoaram ontem à noite, insistentemente, às margens plácidas do rio Pinheiros, na estréia de “Carioca”, nova turnê de Chico Buarque que, na contramão da ponte aérea, começou por São Paulo.

O “lindooooooo” mais arrastado e devoto era das belas e solteiras afilhadas de Balzac. Mal Chico entoou os primeiros acordes de “Voltei a cantar” (Lamartine Babo, 1939), e elas, cabelos escovados nos bons salões e roupas ainda cheirando a vitrines, já se jogavam todas.

Um “lindooo” levemente mais econômico era o silvo das bem mais jovens, poucas, aliás, numa platéia, digamos, bem madura, folhas e folhas de calendários. As raras gazelas viam pela primeira vez um Chico ao vivo. Algumas estavam com os pais; outras, raparigas em flor, faziam companhia a “tiozinhos” galãs viciados num lolitismo sem culpa, como se o viço da pele fosse uma espécie de “Cocoon” (vide o filme) d´alma. Acostumadas a shows em pé, para dançar, essas Renatas Marias esqueceram por uma noite o rock´n´roll e levaram para casa, beleza roubada pelas maquininhas digitais, os olhos verdes do cantor.

O “lindu” sincopado, quase um adultério cometido com o leve bater dos lábios, era o “lindu” de comportadas senhoras caídas sobre o peito de senhores austeros, austeros paulistas com cara de marido, diga-se. Gritavam e davam aquela olhadinha para conferir se estava tudo bem, tudo certo com eles. É Chico, meu bem, me perdoa por te trair, pareciam a dizer em sussuros imaginários. Sem drama, aquele show era um prenúncio do mal, a promessa de felicidade mais tarde, eles sabiam que elas iriam fechar os olhos e pensar mesmo n´outro no leito, que mal faz uma vez e nada mais?!.

“Imagina” (Tom Jobim/Chico, 1983). Júlia, a moça da mesa ao lado, uma mulher de 30 anos, vestes negras e emagrecedoras, perfume de quem saiu de casa com maus pensamentos, esvazia a taça de vinho e, temente aos céus, sibila: “Que homem é esse, meu Deus!”. A amiga, Clara ou Carla, não consegui ouvir direito, só sei que ela faz cinema, indaga: “Fazia?” _de “fazer”, fazer mesmo, que no glossários dos amores líquidos de hoje significa mais ou menos o que você neste exato instante imagina.

Para cada lindooooooo, lindooo e lindu, um “uhuuuu” bem mais grave, aquele que sai, meio selvagem, com aroma mal-intencionado de prosseco italiano, da garganta profunda das belas moças. Como o grito de guerra constante de Maria Paula, a do “Casseta”, carinhosamente abrigada no peito do fofo marido de linhagem Matarazzo.

Sim, muito “Chico, eu te amo” pipocando de todos os cantos do salão. “Palavra de Mulher” (de lavra própria, 1985) soa como um “sim” no altar naquela hora.

E só na vigésima primeira canção, a lei mais explícita e almodovariana do desejo prevalece, impera e ganha voz: “Chico, eu quero dar pra você!!!” Finalmente a vontade coletiva de todas as fêmeas daquele ambiente familiar virava um desavergonhado manifesto escrito a batom e coragem.

“Só você que quer, é, minha filha!?”, cutucou a amiga de cujos cantos dos lábios escorria, desavergonhadamente, a bela baba de moça num cio inadministrável.

“Sua cadela!”, provocou a terceira, uma bela renascentista, carne alva saltando de dentro das vestes. Como elas se divertiam! Que graça uma mesa de mulheres brincando com o desejo como quem pula jogo de amarelinha ou dança, de vestidinho sem nada por baixo, na chuva.

Os homens mantinham um respeitoso silêncio, o silêncio do ciúme discreto. Quase como dissessem, em coro, um saudável “com Chico, pode”.

Sim, como estamos em São Paulo, tinha um japonês atrás de mim, como na vigésima quinta canção, “Bye Bye Brasil” (1979), a do filme do mesmo nome. O japonês, a mulher do japonês e a linda filha do japonês, que parecia saída das páginas de “A Casa das Belas Adormecidas”, livro de Yasunari Kawabata. Naquela mesa não se ouviu um tipo de “lindo” sequer. “Uhuuu”, idem ibidem, nem pensar.

No salão apertadinho do Tom Brasil, uma cadeira em cima da outra e garçons atrapalhando o tráfego, pouca gente –lembrem-se, estamos na austera São Paulo-, arriscou um samba, um passo. Maria Paula, a moça que deixei lá em cima desse texto nos braços de outro, até que tentou inflamar o auditório: “Vamos dançar, galeeeera, isso, dancem, dancem!”.

Não havia mais tempo para nada. Só para Júlia, lembram dela?, tirar a sua milésima foto. Tempo para o último “eu te amo, Chico”, de uma botterinha, fofolete de tudo, que estava a duas mesas da família japonesa. Tempo para as afilhadas de Balzac arrumarem os já desalinhados decotes. Tempo para os econômicos garçons me negarem um chorinho, uma lágrima,um breve latido do cachorro engarrafado. Tudo bem, Francisco no palco, durante todo o show, só bebeu água, haja água. Tempo para um homem triste de bochechas rosadas, jeito de quem acredita mais na bolsa que na vida, malha bege sobre os ombros, reprimir a sua alegre e elegante senhora: “Chega, que histeria é essa, Mônica?!”

Aí não havia mais tempo para quase nada mesmo. Nem para a alegre senhora do homem triste de bochechas rosadas fazer papel de louca. Chico havia feito a sua parte. E as mulheres aplaudiram e pediram bis com lábios de quem estavam a pedir outra coisa.

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Parmenas Alt
Parmenas Alt
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