As práticas de cuidado presentes na cultura de diversas localidades do Brasil devem ser tratadas com respeito e sem preconceito dentro das unidades de saúde pública. Como exemplo desses costumes, temos os raizeiros, benzedeiros, erveiros, curandeiros, parteiras, práticas dos terreiros de matriz africana e das comunidades indígenas e atividades terapêuticas, como florais e massagens, a homeopatia e a fitoterapia.
Até pouco tempo, esses segmentos da população eram desprezados e tratados até como charlatanismo ou descrédito. Desde 2013, contudo, está em vigor a Política Nacional de Educação Popular em Saúde [Pneps], instituída pelo Ministério da Saúde, com o intuito de promover o diálogo e a troca entre práticas e saberes populares com os técnicocientíficos, no âmbito do Sistema Único de Saúde [SUS].
Em Mato Grosso, o Pneps começou a ser colocado em ação por meio do projeto de extensão Saberes e práticas do cuidado: sujeitos e diálogos, da Universidade de Mato Grosso e financiado pelo ministério em parceria com a Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde [Aneps]. O professor Rodrigo Marcos de Jesus é o coordenador, com a colaboração de equipe que tem, entre os integrantes, a docente Suely Corrêa de Oliveira e o doutorando Luiz Gustavo de Souza Lima Junior.
Rodrigo destaca que, ao todo, 11 cidades no Estado receberam oficinas, em 2014, para mostrar como colocar o Pneps em prática. O público participante total foi de 700 pessoas. Suely conta que ficou surpresa ao ver que a maioria eram jovens entre 14 e 17 anos. A pesquisadora foi responsável por falar sobre algumas formas de cuidado, como auriculoterapia [adesivos em pontos da orelha], reiki [transmissão de energia pelas mãos], massagens etc.
Luiz Gustavo aponta que hoje a saúde é demarcada pelo estar ou não estar doente. Bastaria a pessoa não manifestar doença ou se colocar como um sujeito que não tem problema aparente para ser considerada saudável. “Essa política veio olhar para o sujeito como um todo. Alguém está com um problema aparentemente no estômago, mas pode haver relação com questões emocionais. E essas terapêuticas vão olhar para esse campo. Não apenas atacar o problema no estômago com analgésico, mas olhar para o sujeito e não só para aquilo que ele manifesta enquanto dor. É mudar o olhar para o que se entende por saúde, e aí muda tudo”.
Suely, por sua vez, ressalta ainda que a política pretende falar mais sobre saúde, e não só sobre o adoecimento ou a terapêutica medicamentosa, além de fazer abordagem mais completa do ser humano.
Gustavo lembra de um caso que mesclou as duas práticas. “Tem uma mulher que mexe com a fitoterapia [plantas medicinais] em Goiânia e tem o auxílio de uma biomédica, que vai lá ver como é que estão as garrafadas [termo popular referente a remédio] que ela faz. Todas passam por uma inspeção de qualidade sanitária. Não está julgando se resolve ou não o problema, mas se a garrafada passa por um controle de qualidade sanitária”, relata. A experiência foi uma das relatadas por membros da Aneps que fazem parte do projeto.
O doutorando lembra que em Cuiabá também há um exemplo dessa mescla de cultura com técnica. No Horto Florestal Tote Garcia, pessoas da comunidade são atendidos por profissionais da saúde, momento em que há a união de saberes. “A ideia é que a Medicina não seja mais o centro, mas sim que existam diálogos. Esses saberes precisam circular”, aponta Suely, ressaltando que o grupo sabe que essa é uma situação difícil de ser feita devido à relação de poder em que sempre há uma categoria que pesa mais, e neste é a médica e o Ato Médico, que, desde a sua criação, causa polêmica, está aí para mostrar isso.
A pesquisadora afirma que por conta da Lei nº 12.842, ou lei do Ato Médico, aprovada no Congresso Nacional, as mulheres quilombolas, por exemplo, que faziam xarope, garrafadas, foram afetadas. “Elas continuam a fazer do jeito delas, clandestino, porque só quem pode prescrever, seja fitoterapia, seja homeopatia, acupuntura, é o médico”, explica. “Elas não podem colocar que é remédio. É aí que entra no campo da cultura. Elas não estão autorizadas a fazer xarope, mas podem fazer ‘lambedor’, que é um xarope antigo. Elas não podem fazer pílulas, mas fazem ‘ovinhos’ de plantas. Mudam o nome, mas é a mesma coisa”, revela Suely, acrescentando que a orientação sobre a finalidade do produto é dada na hora pela pessoa que produz e vende o “remédio”. “Muitas vezes não vem escrito, porque algumas não sabem escrever para fazer os rótulos, e precisam de ajuda de netos e filhos”.
A Pneps e também a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS [PNPIC], de certa forma, dão aval para que essas pessoas continuem a trabalhar, desde que tenham esse diálogo com o SUS, principalmente na atenção básica, como o Programa Saúde da Família [PSF].
Segundo Luiz Gustavo, a atenção básica [primária], existente nas policlínicas e postos de saúde, não é um campo de interesse do setor privado de saúde, porque isso não dá lucro e é algo difícil de fazer. “Precisa de um médico ali muito atento não só à dor que o paciente está sentindo, mas à sua família e o entorno dele”. Dessa forma, o setor privado tem interesse na atenção de média e alta complexidade, que envolve cirurgias e tudo mais.
Aneps
Suely explica que a Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde [Aneps] surgiu em detrimento dessa política de proibições na saúde, pelo fato das pessoas não poderem ter autonomia sobre o seu corpo, sua vida, sua saúde. Para a pesquisadora, não adianta a proibição, pois as pessoas continuam a fazer. Então, a Aneps veio para dialogar e juntar essas pessoas que ficaram à margem do processo para se articular e levar o diálogo para dentro do SUS.
Atualmente, o projeto de extensão tem trabalho no Centro de Apoio Psicossocial [Caps], do bairro Boa Esperança, em Cuiabá. Três vezes por semana são oferecidos cuidados diferentes da prática da medicina tradicional e sem qualquer ação de contradição aos cuidados da saúde. “Cada um dialogando vai saber o seu papel de como complementar a saúde da pessoa como um todo”.
O grupo também elaborou um pequeno documentário, que busca fazer a divulgação do que foi o projeto. Além de uma cartilha voltada para o grande público, que contém os princípios da ação popular em saúde, relatos do projeto e os produtos que estão disponíveis.